TEXTOS DE
Felipe Macedo (extraídos na íntegra do Cineclube Utopia)
O que é
cineclube
Em Brasília, durante a Jornada
realizada em 2003, alguém me disse que tinha reservas quanto ao nome cineclube.
Por causa desse "clube", que parece uma coisa fechada, elitista. A
mesma dúvida tinha me ocorrido, alguns anos antes. Antes de entender que quando
os cineclubes surgiram, a palavra clube designava exatamente o espírito
associativo e tinha justamente uma conotação democrática, participativa, como
os clubes operários ou de imigrantes do começo do século passado. Depois disso,
80 e tantos anos de atuação consagraram o termo cineclube, que designa em todo
o mundo a nossa atividade. Mas isso não impede que outros interesses, de
variada origem e intenção, tentem conferir outros sentidos a esta – e outras
palavras – com claras implicações ideológicas. À guisa de curiosidade: nos anos
90 eu descobri que as empresas Globo haviam requisitado o registro de marca da
palavra cineclube.
É preciso compreender o que é um
cineclube – até porque a confusão gerada em torno do conceito favorece
justamente uma visão em que os cineclubes não têm um papel muito claro. Sua
importância se dilui quando não se conhecem seus objetivos, suas realizações,
como sua estrutura específica se estabelece e opera dentro das comunidades e do
processo cultural.
Quando a imprensa e outros
divulgadores de valores confundem o Serviço Social do Comércio, um circuito de
salas de arte ou mesmo uma cinemateca com os cineclubes, estão, de fato, ocultando
uma série de conteúdos exclusivos dos cineclubes, escondendo uma visão
ideológica que não quer reconhecer certos potenciais "subversivos" do
cineclubismo. Confundem os conceitos. O mesmo acontece quando chamam as
(verdadeiras) rádios comunitárias de rádios piratas.
Assim, de uma maneira geral,
cineclube é entendido pelo senso comum como uma atividade meio de lazer
cultural, fomentada talvez por algum tipo de nerd juvenil amante do cinema. Ou
é um sinônimo de sofisticação do consumidor, uma espécie de grife que adorna
desde sessões especiais na televisão até salas "diferenciadas" que
exibem os filmes com expectativa de público menor. Misturando um pouco de cada,
também chamam de cineclube às beneméritas iniciativas de organizações
culturais, educacionais, patronais e paternais voltadas ao aprimoramento da
cultura de variadas comunidades – que, aliás, nem sempre atingem seu
público-alvo. É claro que todas essas atividades têm seu lugar, sua
necessidade, seu público dentro da sociedade. Nada contra. Mas cineclube é
outra coisa.
Os cineclubes têm uma história
própria, que liga a evolução do seu trabalho às diferentes situações nacionais,
culturais e políticas em que se desenvolveram. Há vários tipos de cineclubes,
alguns predominam em determinados países, em certas conjunturas; em situações
diferentes sua forma de organização e atuação também variam. Os cineclubes
surgiram nitidamente em resposta a necessidades que o cinema comercial não
atendia, num momento histórico preciso; assumiram diferentes práticas conforme
o desenvolvimento das sociedades em que se instalaram; mas assumiram uma forma
de organização institucional única que os distingue de qualquer outra.
Para começar, e apenas para
introduzir um conceito atualmente familiar, os cineclubes são ONGs. São ONGs
que associam pessoas em torno da atuação com cinema, mas são mais definidos que
apenas isso.
Três características, quando
juntas, são exclusivas dos cineclubes, os distinguem de qualquer outra
atividade com cinema e, ao mesmo tempo, abrangem uma ampla gama de formas e
ações que os cineclubes desenvolveram nos mais diferentes contextos. Duas delas
são muito simples e claras, só se encontram, juntas, num cineclube; e não
existe cineclube onde essas características não estiverem presentes. A
terceira, menos objetiva, varia bastante de entidade para entidade, conforme a
orientação ideológica predominante, mas é o que imprime direção à base
organizacional definida pelas outras duas "regras" e o que dá
conteúdo e objetivo, atualidade e personalidade ao trabalho do cineclube.
1.
O cineclube não tem fins lucrativos.
2.
O cineclube tem uma estrutura democrática.
3.
O cineclube tem um compromisso cultural, ou ético.
Essas três "leis" do
cineclube, pela simplicidade e também pela sua inexorabilidade, excluem todas
as outras formas de atividade com cinema que o senso comum e a ausência de
reflexão identificam como cineclubes. Mas permitem, simultaneamente, que
identifiquemos uma mesma longa e coerente linhagem histórica entre instituições
que assumiram as mais diversas formas de organização e de atuação.
Os "cinemas de arte"
têm dono, e seu objetivo maior é o lucro. Museus, entidades educacionais,
assistenciais e outras, contratam ou nomeiam responsáveis; podem ser
iniciativas boas, justas, eficientes e necessárias mas, a rigor, não são
democráticas. Vejam bem, nem toda instituição deve necessariamente ser
democrática. Com freqüência, a especialização, a experiência, ou a existência
de fins muito precisos, determinam a necessidade de dirigentes escolhidos por
outros critérios, que não devem ser considerados anti-democráticos. Por outro
lado, a prática da democracia como forma mesmo de organização, estabelece outra
dinâmica estrutural, outra forma de atuação. A busca do lucro também, a
competição no mercado, foi o que até hoje assegurou o nível de universalidade
que o cinema – e outras formas de exibição – atingiram. O cinema comercial, a
televisão e, por enquanto em menor medida, a internet, em que pesem seus
aspectos negativos, constituem a cultura popular por excelência, e o canal mais
amplo – portanto de certa forma mais democrático – de informação e participação
do conjunto da população. Assim, o que releva aqui é determinar essa diferença,
a particularidade do cineclube, não fazer um juízo ético.
Num cineclube, os responsáveis
pela sua orientação são necessariamente eleitos. A representatividade, a forma
de se organizar essa democracia, como qualquer outra democracia representativa,
não costuma ser perfeita: podemos encontrar cineclubes com uma "panelinha"
dirigente, assim como os que eram geridos, trabalhosamente, por decisões de
assembléias bem numerosas, com todo tipo de situação intermediária. Mas os
dirigentes são trocados, periodicamente, segundo a avaliação de seu desempenho
e da direção que imprimem à entidade. Creio que é isso que lhes dá uma grande
mobilidade e adaptabilidade, historicamente e nos mais diversos ambientes
sociais. Os cineclubes têm uma característica orgânica que lhes permite superar
a estagnação.
Não ter fins lucrativos é outro
elemento fundamental. É claro que a busca do lucro restringe o alcance de
qualquer atividade, quando não lhe sacrifica, em maior ou menor grau, a
qualidade. Basicamente os empreendimentos comerciais orientam sua ação pela
realização do lucro, eliminando qualquer aspecto que dificulte, postergue ou
mesmo reduza este objetivo. A tendência predominante na atividade comercial é a
repetição, das experiências consagradas, lucrativas e a manutenção do status
quo. Além disso, apropriação do lucro por uma pessoa ou grupo de pessoas é a
base mais fundamental da nossa sociedade de classes. No cineclube, ainda que
ele produza superavits financeiros com as suas atividades, esses resultados têm
(até por lei) que ser reinvestidos na própria atividade: são, portanto, apropriados
por todos. Nesse sentido, o cineclube não é uma instituição capitalista.
O que nos leva à terceira
"lei": organizado com base na mobilização de seus associados em
função de um objetivo não financeiro, os cineclubes se voltam para fins
culturais, éticos, políticos, estéticos, religiosos. Quase sempre realizam, de
alguma forma, mesmo parcialmente, seus objetivos. Ou seja, os cineclubes
produzem fatos novos, interferem em suas comunidades, contribuem para mudar
consciências e formar opiniões, mobilizam. Não raro, são as sementes que chegam
à floração de cineastas e outros artistas; crescem como instituições,
transformando-se em museus, cinematecas, centros de produção; criam o caldo de
cultura para mudanças culturais, comportamentais, para a geração de movimentos
sociais. Os cineclubes produzem e modificam a cultura.
Estas três características também
estão consagradas na legislação da maioria dos países. No Brasil, desde o final
dos anos 60, com a Lei 5536 (de 21/11/68) e, mais tarde, com as conquistas
obtidas pelo movimento cineclubista organizado, com a Resolução nº 30 do
Concine (1980), os cineclubes tinham de ser "associações culturais sem
fins lucrativos", que aplicassem seus recursos exclusivamente em suas
atividades culturais cinematográficas (também definidas na legislação). Um
parágrafo, em especial, define com muita clareza o que é não ter fins
lucrativos: os cineclubes "não podem remunerar sócios, dirigentes ou
mantenedores". Ou seja, as entidades podiam gerar e gerir recursos de várias
naturezas, desde que os aplicassem exclusivamente nos seus próprios objetivos.
Todos, entretanto, que dispusessem de poder dentro da instituição – sócios,
dirigentes e mantenedores – não poderiam usufruir desses recursos.
Infelizmente não é raro que o
cineclubista estreante desconfie de estatutos e regulamentos que rejam a
atividade dos cineclubes, vendo nisso um constrangimento, uma limitação, em vez
de perceber que são exatamente essas regras que asseguram o controle
democrático da entidade e que, na verdade, garantem e consolidam a
possibilidade do cineclube ser criativo.
Há mais um aspecto fundamental
dessas três leis. As duas primeiras identificam todos os cineclubes entre si,
excluindo outras formas de organização. Elas são a base fundamental para a
estruturação de um movimento, com identidade de organização e interesses
iguais: historicamente as entidades representativas de cineclubes incorporam –
e freqüentemente aprofundam – essas mesmas características fundamentais. No
Brasil, por exemplo, o Conselho Nacional de Cineclubes tinha eleições
"indiretas" – isto é, votavam as federações – até 1974, passando
depois à forma de representação mais direta, onde todos os cineclubes
democrática e legalmente constituídos votavam. A Dinafilme, distribuidora de
filmes do movimento cineclubista, foi criada como órgão do CNC e era gerida por
uma administração eleita diretamente nas jornadas de cineclubes e um conselho
administrativo com representantes de cada Estado ou federação.
Se as duas primeiras
características aproximam e identificam os cineclubes, é justamente a terceira
que os distingue, que permite que suas formas de atuação possam ser tão
diferentes umas das outras, ricas, vivas, criativas. E que os cineclubes tenham
tanto em comum, desde o cinema mudo até as formas mais modernas de diálogo do
público com a imagem, que estaremos sempre criando. Com projetores a carvão ou
imagens digitais, em telas de lençol ou de plasma.
Hegemonia e
Cineclube
Este texto foi escrito há cerca de 20 anos. Relendo-o, quase chego a
corar com alguns momentos de ingenuidade, outros de pretensão; uns trechos
simplistas, outros meio gongóricos. O tom é o de um artigo cuja intenção era
polemizar, meio didaticamente, com a então diretoria do CNC e outras tendências
que havia no movimento em 1985 (Não reproduzo aqui a parte final do texto, que
justamente discute coisas muito pontuais que estavam acontecendo naquele
momento). A linguagem, também, é super "datada" – quantas vezes
aparece a palavra estrutura! – e bem fora de moda nestes tempos de maximização
de sinergias liberais. Mesmo assim, ainda considero que ele traz questões
fundamentais para a reflexão de qualquer cineclubista. Pode-se falar de
proletário, operário, trabalhador, assalariado, tratar da burguesia, do
empresariado ou mesmo da iniciativa privada – as relações sociais continuam
essencialmente as mesmas. Redigido numa época em que o vídeo engatinhava, a
internet era uma curiosidade, não se falava em rádio comunitária – no máximo
rádio-patrulha – e multiplex seria confundido com fixador de cabelo, o texto
fala justamente de como é inerente ao cineclube descobrir novas formas de
organização e encontrar novas frentes e novos modos de atuação, desde que se
mantenha como uma instituição democrática, sem fins lucrativos e comprometida
com as maiorias.
O conceito gramsciano de
hegemonia é a questão ideológica central que hoje separa tão agudamente as
diferentes correntes políticas do movimento cineclubista brasileiro. Ainda que
algumas delas não percebam isso claramente.
Este artigo pretende, então,
explicitar a nossa posição quanto ao problema, mostrando, também, como se
colocam com relação a ele as demais tendências do movimento.
Há vários livros sobre a obra de
Antonio Gramsci. Muitos deles tratam exaustivamente - e alguns exclusivamente -
do conceito de hegemonia. Além da obra do próprio, temos "A Favor de
Gramsci", de Maria Antonieta Macchiochi; "O Conceito de Hegemonia em
Gramsci", de Luciano Gruppi, para citar apenas dois que me ocorreram de
imediato. Várias obras de Carlos Nélson Coutinho, Leandro Konder e Ferreira
Gullar trazem fortes influências do pensamento gramsciano e, particularmente,
utilizam o conceito de hegemonia (e outros conceitos importantes que também
devem ser creditados ao pensador marxista italiano, como o de "bloco histórico",
"nacional popular", etc) nas suas tentativas de compreender a
realidade brasileira. Nessa companhia eu fico até temeroso de vir aqui tentar
resumir o que é hegemonia ou mesmo ter a pretensão de estabelecer a sua ligação
com o cineclubismo, de maneira peremptória e definitiva. Mas vamos lá, sabendo
os companheiros que me lêem que isto é apenas uma esquematização rápida e
despretensiosa. Qualquer um desses dois temas merece um ou mais livros
inteiros. Também não vamos cair aqui em detalhamentos, necessários ao maior
rigor científico, mas que são tratados volumosamente pelos autores citados e
que teriam aqui um sabor de pretensão e uma chatice acadêmica que o movimento
cineclubista certamente não engole.
Foi Lênin que tornou
universalmente conhecidos o conceito e a expressão "ditadura do
proletariado", entre outras coisas para descrever a organização do poder
político durante a fase em que a classe operária, na direção das demais classes
que a ela se aliam para combater o sistema capitalista, dirige o processo de
transição para o comunismo. Depreende-se daí que, antes disso, vivemos numa
"ditadura da burguesia", pois é ela que dirige e domina as demais
classes no sentido de preservar o seu modo de produção e de vida. Note-se que,
antes ainda, a burguesia, para implantar a sua "ditadura", dirigiu o
processo revolucionário que destruiu o feudalismo, comandando inclusive, nessa
luta, os próprios embriões da classe operária que já existiam, mas não tinham
condições de formular, eles próprios, os elementos necessários para levar a
revolução burguesa mais adiante.
Estas afirmações estão baseadas
em fatos científicos estabelecidos antes ainda, por aqueles dois velhinhos
simpáticos, Marx e Engels, segundo os quais as classes sociais se definem
segundo seu papel no processo produtivo; que daí decorre a formulação de sua
ideologia, isto é, do conjunto de valores que compõem a sua "visão de
mundo" e serve para criar, organizar e sustentar toda a superestrutura
jurídica, política, religiosa, etc, e cultural, que explica e legitima
exatamente esse seu papel no processo produtivo; o seu e o das demais classe.
Para eles existem duas classes fundamentais; uma que detém os meios de produção
e outra que vende a sua força de trabalho, pois é a única coisa que tem.
Na análise da evolução do
capitalismo em seus diversos estágios, até a etapa do imperialismo - que Lênin
localiza como seu último estágio antes do advento do socialismo - ficou claro
que nesses dois campos prevalecem, de um lado a burguesia industrial e
financeira, e de outro, o operariado fabril. Nos seus respectivos lados essas
duas classes sociais representam a relação mais essencial do modo de produção
capitalista e, por isso, são os setores mais avançados e organizados de cada
lado. Sob a batuta da primeira seguem os proprietários de terras, os
comerciantes, etc, que cada vez menos se distinguem da relação capitalista tal
como é estabelecida na indústria. Da mesma forma se aliam aos operários, muito
mais experientes e organizados, os camponeses - que também se tornam cada vez
mais operários do campo - e todos os assalariados empregados de outras formas
na produção.
No meio ficam os setores
denominados brilhantemente de setores médios. Nessa categoria vasta devem nos
interessar particularmente os "intelectuais". O que vai desde os
poetas como Bertold Brecht - que tem sido muito citado - até os engenheiros,
administradores, padres, freiras, etc. E também ficam no meio os indivíduos,
porque indivíduo não é classe social, e tem muito operário sem-vergonha ou
burro, assim como a maioria dos dirigentes revolucionários de renome foram
traidores da burguesia: intelectuais e até empresários, como o bom e velho
Engels. Esse "meio", de certa forma, oscila entre os dois lados,
conforme o que Gramsci chamava de "superioridade intelectual e moral"
da classe que o atrai; conforme, naturalmente, os benefícios e estímulos,
prejuízos ou punições que acarretem a sua adesão a esta ou aquela ideologia, a
esta ou aquela classe.
Mas Lênin utilizou a expressão
ditadura do proletariado no meio do fogo da Revolução. Seus escritos que
abordam a questão cultural, embora não caiam em generalizações mecânicas, estão
normalmente voltados para os problemas concretos e mais imediatos. Gramsci, ao
contrário, escreveu a maior parte da sua obra em cana, sob o fascismo, e tende
a examinar mais acuradamente as nuanças dos desdobramentos da realidade. O
primeiro escrevia para os sovietes que iam deliberar, para as plenárias; o
segundo teorizava para a futura democracia italiana. Mas o próprio Gramsci via
uma enorme proximidade entre seu conceito de hegemonia e o de ditadura do
proletariado.
O conceito de hegemonia procura
descrever a dialética de domínio e direção, os dois elementos necessários para
que uma classe seja dominante numa sociedade.
Em outras palavras, uma classe
domina as demais sobretudo por dispor de um aparato de coerção, quase sempre
ligado ao Estado, constituído pelo monopólio da força: polícia, exército,
eventualmente massas armadas. Este seria, então, o terreno da função de domínio
da sociedade.
Mas, como todas as ditaduras
ilustram muito bem - e a brasileira em particular - apenas a força não é
suficiente para assegurar uma estabilidade permanente. Os regimes baseados
exclusivamente neste elemento de coerção têm maior ou menor duração histórica,
mas sempre acabam por se desintegrar. Assim, uma classe (ou bloco de classes)
que pretende ocupar uma posição dominante na sociedade tem de ser capaz de
apresentar a sua própria ideologia, a sua visão de mundo, como sendo universal,
como sendo verdadeira para os demais setores da sociedade (e, portanto, como
não sendo mais uma ideologia). No maior grau possível, sua visão de mundo e o
projeto político que ela encerra, têm de representar uma espécie de consenso da
nação. Assim ela exerce a direção das demais classes (ou da maioria, ao menos).
Uma classe, ou bloco de classes,
é hegemônica quando reúne essa duas condições, domínio mais direção, já que,
isoladamente, nenhuma delas é suficiente para assegurar a estabilidade da sua
supremacia.
O conceito de ditadura do
proletariado já continha essa idéia, como se pode verificar em diversos
escritos sobre os intelectuais, de Lênin. Mas é claro que foi Gramsci quem
melhor explicitou a relação dialética entre esses dois elementos de domínio e
direção, abrindo a perspectiva de um aprofundamento do caráter democrático da
hegemonia da classe operária no socialismo. Pois, nas sociedades capitalistas
mais modernas, ele realçava a necessidade de aprofundar a luta ideológica, de
"ganhar" as classes aliadas ao operariado fabril, ao invés de
privilegiar os aspectos militares (que seguem sendo uma realidade) e as
conseqüentes opções golpistas que ocorrem estar associadas a concepções
estritamente violentas.
Voltemos, então, à hegemonia. É
evidente que além do poder de coerção - que no plano interno das nações
modernas é cada vez menos importante [nota atual: Frágil avaliação; na verdade os
instrumentos de coerção das populações vêm se aperfeiçoando, se sofisticando
cada vez mais e tendem a se tornar praticamente onipresentes, tendo ganho um
enorme impulso depois dos atentados às torres gêmeas de Nova York.]
(pois no plano internacional ele é absoluto, com "guerra nas
estrelas" e o diabo) – a estabilidade do capitalismo e da burguesia estão
fundamentalmente baseados na sua capacidade de apresentar-se como o melhor
regime possível, o sistema das liberdades individuais e da fartura de bens de
consumo. Não importa que essas liberdades efetivamente não existam no grau em
que são apresentadas; que elas sejam limitadas seja por um alto nível de
repressão e de fragilidade institucional, nos países ditos do Terceiro Mundo,
ou pelo poder extraordinário dos grandes grupos econômicos, por trás de todas
as instituições que produzem conhecimento - ou melhor, ideologia - como as
escolas, a imprensa, a televisão, etc. Não importa, também, que à alegada
fartura de bens de consumo corresponda na verdade uma enorme miséria, seja nos
países espoliados pelo imperialismo ou mesmo nos enormes bolsões de pobreza
absoluta que se encontram até nos países mais avançados do capitalismo.
O que importa realmente, no
sentido de que a burguesia consiga manter a sua hegemonia sobre as demais
classes sociais, é a sua capacidade de apresentar - e convencer estas últimas
de que seu regime é o melhor possível. O que importa é que o senso comum da
população (antigamente se diria das massas) esteja impregnado e convencido
dessa idéia; que, nos mínimos detalhes do cotidiano, o capitalismo esteja se
reproduzindo diariamente, na "naturalidade" com que se encara o ato
da venda da força de trabalho (como se não houvesse outra possibilidade), na
manutenção das "tradições" dos poderosos, da
"superioridade" do homem sobre a mulher, do branco sobre o negro,
etc, etc, etc. Isso é a capacidade de direção, isso é o complemento indispensável
da força, para se dizer que o capitalismo e a burguesia são hegemônicos: sua
ideologia é universalizante, fazendo parte inclusive do senso comum das massas.
Como dissemos anteriormente, a
ideologia é um conjunto de valores (hábitos, costumes, tradições, preconceitos,
etc, até teorias). A capacidade de universalizar, de generalizar para as demais
classes a sua ideologia é dada pelas instituições, que Gramsci chamou de
instituições valorativas, porque estão, justamente, ligadas à difusão de valores.
Os franceses [nota atual Generalização apressada; eu estava me referindo a
Althusser, muito em moda naquela época.] se apressaram em chamar essas
instituições de aparelhos ideológicos. E, se quase todas as instituições
exercem esse papel de disseminar a ideologia da supremacia burguesa, em maior
ou menor grau, é claro que algumas dentre elas saltam à vista pelo seu caráter
mais "especializado", pela sua função mais imediata e obviamente
idológica: a Igreja (ou igrejas, já que as seitas americanas invadem hoje a
periferia das grandes cidades e as babaquices de tipo indiano conquistam
parcelas da juventude pequeno-burguesa), o sistema educacional, a imprensa e
todas as entidades que compõem a chamada indústria cultural.
Para quem acredita, então, que as
classes sociais competem entre si pela supremacia na sociedade - a
"vulgarmente" chamada luta de classes - é óbvio que as classes lutam
não apenas pela capacidade de domínio, mas também pela possibilidade de direção
da sociedade. E que, portanto, essa luta não se dá apenas no plano econômico e
político - ou militar - mas também no plano ideológico. O terreno, a arena da
luta de classes não é constituído apenas pelas frentes sindicais e partidárias
mas, com igual importância, pela frente ideológica ou cultural.
Na mesma medida em que as classes
sociais concorrem entre si para se apropriar do Estado, também competem - e
Gramsci deseja identificar esse processo e torná-lo consciente - pela
influência na sociedade civil. A disputa por ambas as funções - de domínio e de
direção - é igualmente importante, é inseparável e concomitante. A separação
dos elementos ideológico e/ou político compromete, inclusive, a própria direção
dessa luta.
Daí que as classes sociais
subalternas, que disputam com a burguesia a supremacia na sociedade, sob a
liderança da classe operária, sempre que organizem sob sua direção instituições
valorativas, vulneram e até impedem a supremacia burguesa. Na mesma medida,
situam e isolam o próprio aparelho estatal, tornando viável a sua apropriação.
De certa forma, nesse processo, a classe operária forja as superestruturas do
seu poder futuro. Isto é, vai construindo as instituições que serão o canal
para o exercício da sua hegemonia, o que é, ao mesmo tempo, condição
indispensável para o seu triunfo enquanto classe.
Além do mais, as instituições
sociais não são todas originárias do domínio burguês, e é possível fazer uma
extensa listagem de, digamos, contra-instituições, a serviço da classe operária
e seus aliados, como o partido político operário, por exemplo. Mas também o são
um teatro nacional popular, escolas ligadas à formação de quadros sindicais, o
próprio sindicato autônomo do Estado e - aonde queríamos chegar - os
cineclubes.
Dessa maneira a gente pode chegar
a uma definição do que seja cineclube. Uma definição não estreita nem sectária,
que é capaz de compreender as inúmeras formas diferentes em que os cineclubes
se constituem na realidade, sem reduzi-las a uma receitinha dogmática. Uma
definição que comporta uma compreensão do papel estratégico que têm os
cineclubes, sua função histórica, política, social e cultural.
Cineclube, portanto, é uma forma
de organização do público que visa resgatar à ideologia dominante - organizada
e expressa pela forma tradicional do cinema comercial - sua influência de
dominação, constituindo-se como uma instituição privada de hegemonia a serviço
das classes populares, forjando, desde já, a superestrutura do poder futuro na
organização do processo de comunicação. Construindo desde já uma nova relação
entre o público e o cinema, e um novo cinema, que advém exatamente dessa nova
relação do público com a arte.
Compreender o cineclube, vale
dizer, o cineclubismo, principalmente a partir da sua evolução histórica - nos
últimos 60 anos - é perceber que ele é também um movimento em evolução
dialética. Nesse sentido, mesmo hoje a gente pode observar muitas das formas de
cineclube que foram, em outras épocas, as formas mais comuns, as formas
dominantes daquela época. E desde as formas mais "primitivas", menos
conscientes do seu papel histórico e cultural, os cineclubes já continham
dentro de si as contradições que os fazem evoluir no sentido de realizar
plenamente sua condição de contra-instituição, de aparato social não mais de
dominação ideológica, mas de realização integral do conhecimento na relação
democrática do público com a obra cinematográfica (ou videográfica, ou
televisiva, ou o que seja).
Os primeiros cineclubes surgiram
como uma reação mais ou menos espontânea à excessiva padronização que a
monopolização do cinema ia instituindo. Eles estavam cheios de ilusões sobre a
"sétima arte", sobre "o belo" e coisas assim. Contudo,
ainda assim, eles já nasceram como uma organização sem fins lucrativos - o que
os separava radicalmente dos valores de mercado -, já nasceram baseados numa
estrutura coletiva e democrática (em maior ou menor grau, mas sempre
democrática) e já nasceram com uma clara disposição de se contrapor ao poder
monopolizado e alienador do cinema comercial, valorizando as obras que não
encontravam distribuição no mercado comercial ou que eram alijadas por motivos
estéticos, políticos, etc.
Dessas características de todos
os cineclubes: a econômica, que os distingue da iniciativa capitalista; a
política, que os organiza de maneira democrática, e a ideológica, mais variável,
mas que sempre os coloca fora ou contra os poderes econômicos ou políticos -
dessas características decorre o caráter dialético da estrutura do
cineclubismo, que sempre os impulsiona a resolver suas contradições. Em outras
palavras, se um cineclube, por exemplo, se fecha num grupinho que tende a
moldá-lo num certo sentido, estético, político, o que seja, sempre haverá a
possibilidade de se obter a adesão de mais associados e inverter, no voto, a
situação. É claro que isso nem sempre acontece, que freqüentemente os
cineclubes nem sequer consolidam a sua organização interna de maneira a
consagrar essa característica democrática. Mas, no transcorrer da sua história,
a maioria dos cineclubes - e o movimento, enquanto tendência histórica e social
- obedeceu a essa progressão, em que as formas mais avançadas foram superando
as mais atrasadas.
Conceber, portanto, o cineclube
como uma instituição privada de hegemonia a serviço das classes populares,
corresponde ao momento atual e só foi possível após a superação de décadas de
elitismo e de pelo menos uma década também, de instrumentalização e
aparelhismo, além de inúmeras outras formas de cineclubismo menos cotadas.
Apropriação
indébita
A sofisticação e centralização
crescentes das formas de comunicação faz com que raras idéias consigam ser
postas em circulação, hoje em dia, se não encontrarem uma forma de composição
com a complexidade de interesses que envolvem a "mídia". A falta de
acesso aos equipamentos de produção e sobretudo de divulgação é capaz de produzir
um silêncio bem mais eficiente do que qualquer forma de repressão, uma
"unanimidade" mais perfeita que qualquer censura.
Mais elaborada e eficiente,
porém, e mais essencial na trajetória da luta das idéias, do desenvolvimento da
cultura e da civilização, é a apropriação: a assimilação e redirecionamento do
que era contestatório no sentido da renovação e fortalecimento do status quo. É
possivelmente a forma mais sofisticada (de sofisma: artifício, logro) de
aniquilamento de idéias transformadoras e a ferramenta mais essencial para a
manutenção e reprodução do estabelecido. De fato, a apropriação é a mecânica
fundamental da indústria cultural, que não produz, apenas distribui a cultura.
Mas o que é cultura? Fala-se
tanto dela, teoriza-se fartamente, mas um halo esotérico permanece sobre o
tema. Classificam-na em vários departamentos, do popular ao erudito, mas sua
essência permanece obscura para a maioria das pessoas, presa de uma série de
preconceitos que lhe atribuem valores equivocados.
E não é tão complicado assim.
Cultura, no seu sentido mais amplo, e mais simples, é apenas conhecimento
acumulado. Desde o momento em que o primeiro homem das cavernas compreendeu que
repetir o ato de enfiar uma semente no solo daria origem ao seu alimento; que
determinadas extensões do seu braço eram meios eficientes para a caça, ele
passou a acumular conhecimento e erigir sua cultura. E nossa cultura também, a
cultura universal, já que esses - e tantos outros - conhecimentos mais básicos
acabaram assimilados por todas as "culturas".
É claro que a cultura já não
evolui mais com o dedo ou o braço, mas as operações mais complexas, da arte, da
ciência e da tecnologia, são apenas formas mais complicadas do ato de conhecer
e acumular conhecimento. E conhecer, aprender, por sua vez, é a forma
tipicamente humana – não instintiva – de poder reproduzir e progredir nossa
intervenção sobre o meio ambiente. O homem atua sobre o meio que o cerca para
poder sobreviver: ele trabalha. Cultura é, portanto, decorrência direta e
exclusiva do trabalho. Por mais que se sofistique, que se acumulem
intermediações entre o ato de transformar a natureza – ou trabalho – e a
acumulação de seus resultados sob a forma cultural, ainda assim, toda a cultura
continuará sendo conseqüência exclusiva do trabalho.
Esses conceitos nos levam a
pensar nas típicas figuras que o senso comum identifica como os grandes
"produtores" de cultura, hoje em dia: cientistas, técnicos, artistas.
Que são, justamente (e muito simplificadamente), os trabalhadores que realizam
as atividades mais próximas dessa idéia básica e original de
"transformação da natureza", ou são, pelo menos, os agentes das
transformações mais visíveis da realidade.
Ainda laborando com o senso
comum, cientistas ou artistas costumam ser esquisitos, rebeldes, diferentes,
quando não constituem uma verdadeira ameaça para os "bons costumes".
A Igreja os queimou aos milhares, e continua não gostando deles; Estados e
Corporações poderosas têm de prendê-los, fisicamente mesmo ou através de todo
tipo de subterfúgio, do financeiro ao criminoso; a mídia cria um planeta à
parte, simultaneamente esquizóide e paradisíaco, onde vivem os grandes astros e
estrelas.
São eles, cientistas, artistas, e
muitos outros tipos de trabalhadores, que efetivamente realizam o ato gerador
de cultura. Mas não são eles que "entregam" esse trabalho, não são
eles os responsáveis pela sua distribuição ao conjunto da população, não são
eles que tornam esses acréscimos particulares parte da cultura geral; é a
"indústria". As chamadas indústrias culturais, de comunicações, a
mídia, o entertainment. Assim, a cultura do conjunto da sociedade se desenvolve
a partir do conhecimento real que lhe é agregado como produto do trabalho de
muitos, mas a orientação final, o sentido das descobertas e avanços no
conhecimento, são moldados conforme os interesses e necessidades das
organizações que se apropriam desse trabalho e desse conhecimento antes deles
se tornarem públicos, antes de serem distribuídos para todos, antes de serem,
efetivamente, cultura.
Quem controla a distribuição
controla, afinal, o processo. Mas continua não sendo capaz de produzir o ato
gerador de cultura. Na tensão desses dois momentos de processo de conhecimento
e cultura é que se situa o palco da maior guerra da Humanidade: de um lado o
Trabalho, gerando fatos e idéias e procurando brechas no poder de controlá-los;
do outro lado, o Poder (que hoje atende pelo nome de Capital), dono de tudo,
mas incapaz de criar e permanentemente ameaçado por novos fatos e idéias que
tem de conseguir controlar. A História tem sido uma dialética desses dois
momentos, de rupturas (provocadas pelo avanço do conhecimento e da cultura)
quase sempre violentas, seguidas de reacomodações controladoras.
Mas essa guerra é permanente e
cotidiana, não se trava apenas nos períodos de convulsão social, mas a cada
instante, a cada ato que reproduz continuamente o ininterrupto processo
cultural. E também explode, freqüentemente, com intensidades variáveis, nos
movimentos de renovação artística, de afirmação de direitos, de contestação dos
costumes, de organização de setores da sociedade. E, da mesma forma, em cada
uma dessas batalhas, está presente essa tensão entre criação e controle.
Assim o rock revolucionário dos
anos 60 virou o disco dos anos 70 (com muitos mortos e feridos); a música
popular brasileira em geral venceu a batalha pelo espaço midiático com a música
industrializada importada, mas sofreu um processo de pasteurização nas
engrenagens das gravadoras multinacionais e perdeu, provisoriamente, grande
parte do seu ímpeto criativo; assim o cinema brasileiro vai e vem no mercado
brasileiro, lastreado na sua capacidade única de colocar nosso povo na tela,
mas cercado e assaltado pelas distribuidoras estado-unidenses.
E assim também se deu a
participação dos cineclubes – algumas vezes involuntária ou inconsciente – não
apenas na trajetória do cinema, mas em diversos outros setores da sociedade
brasileira. Exemplos dessa dialética cineclube-cinema estão no artigo seguinte,
Matou o cineclube e foi ao cinema. Da distribuição clandestina ao grande
circuito exibidor, também aborda essa questão.
Matou o
cineclube e foi ao cinema
Este artigo, rapidamente alinhavando alguns exemplos da influência dos
cineclubes brasileiros em outros tantos setores da vida nacional, é uma espécie
de continuação da argumentação desenvolvida no texto Apropriação indébita.
O cineclubismo, particularmente
no Brasil, é um exemplo muito eloqüente desse processo de apropriação - e
conseqüentemente de marginalização - e uma forma particular das muitas que
contribuem para tentar reduzir a importância do cinema brasileiro. Sim, porque
o cineclubismo é uma dependência, um departamento do cinema brasileiro e o
"esquecimento" disso é mais uma forma desse mesmo fenômeno que
estamos descrevendo. Apesar do cineclubismo estar na origem de quase todas as
iniciativas e instituições importantes do cinema; a despeito de um número
enorme de personalidades da vida pública, em todos os setores, terem sido
cineclubistas; mesmo quando a indústria cinematográfica incorpora pessoas e
métodos originários dos cineclubes, ninguém - intelectuais, imprensa, gente de
cinema - estabelece essa relação.
Embora praticamente todas as
figuras de primeiro plano em toda a história do cinema brasileiro: os maiores
realizadores, os principais críticos, altos executivos de cinema e televisão, e
também políticos, líderes de organizações e movimentos sociais tenham começado
- e adquirido - sua experiência no cineclubismo, esse dado biográfico é, no
mais das vezes, esquecido, quando não ocultado em sua trajetória. Não por eles
mesmos, mas pelos que refazem ou analisam suas biografias.
Paulo Emílio é um caso clássico,
que exemplifica muito bem como o cineclubismo fez parte das vidas de tantas
personagens fundamentais das nossas História e cultura contemporâneas: jovem
comunista já famoso por sua inteligência e ousadia, depois de fugir da prisão e
exilar-se em Paris, conheceu Plínio Sussekind (outro cineclubista, fundador do
primeiro cineclube brasileiro, o Chaplin Club) que o levou para o Cinema. De
volta ao Brasil, fundou o Clube de Cinema de São Paulo, que viria a tornar-se a
atual Cinemateca Brasileira, e continuou a vida inteira atuando de forma
militante, engajada, na produção de um pensamento crítico sobre o cinema
brasileiro e, sobretudo, na formação de gerações comprometidas com o nosso
cinema. Pouco antes de morrer, Paulo Emílio ainda ajudou a fundar a Dinafilme
(distribuidora de filmes do Conselho Nacional de Cineclubes), cedendo-lhe o
acervo de 16mm da Cinemateca, num momento de muita repressão política em que
ele mesmo estava ameaçado de ser alijado da Universidade de São Paulo. O
próprio Paulo Emílio se definia como, "essencialmente um
cineclubista" (depoimento a Rui Coelho, in Um Intelectual na Linha de
Frente – Carlos Eduardo Machado Calil e Maria Tereza Machado, organizadores,
Ed. Brasiliense, 1986).
Ele sempre foi uma figura
magnética, que atraía e comprometia gerações de seus alunos e admiradores com o
Cinema – entendido como processo cultural, político, econômico e artístico – e
especialmente com a luta em defesa do Cinema Brasileiro. Paulo Emílio foi mais
que professor, escritor, crítico, dentre as múltiplas posições que ocupou na
nossa cultura. Sua adesão ao cinema foi essencialmente e sempre política e,
dentre os diversos tipos que compõem o universo cinematográfico, certamente a
definição que melhor o enquadra é mesmo a de cineclubista, se o observador for
desprovido dos muitos preconceitos que cercam esse conceito.
Como ele, todos os personagens
importantes em qualquer área do Cinema no Brasil começaram em cineclubes:
críticos, realizadores, executivos da nossa "indústria", gente do
marketing, responsáveis nos diferentes níveis de governo. Além dos exemplos
históricos, todos os cineclubistas que conheci e que passaram a atuar profissionalmente
em qualquer segmento relativo ao Cinema, sempre se destacaram. Definitivamente,
não creio que seja uma coincidência. O trabalho nos cineclubes brasileiros
coloca as pessoas em contato com uma visão necessariamente geral do Cinema, com
um pensamento sobre o cinema que inclui as preocupações estéticas, políticas,
econômicas e dá ao cineclubista uma visão muito particular e, ao mesmo tempo,
muito ampla. Principalmente porque o cineclubista atua sobre a relação do
cinema com o público e sem nenhum interesse pessoal ou corporativo. Um dos
problemas do Cinema no Brasil tem sido exatamente a visão estreita de cada
setor envolvido. Durante décadas, os cineastas e produtores, lutando
heroicamente para conseguir realizar seus filmes em condições pouco favoráveis,
concentraram suas preocupações na obtenção de recursos, na produção; com isso
não questionavam a distribuição e exibição de seus filmes e não enxergavam – e
não alteravam – o conjunto do problema. Nos piores tempos da Embrafilme,
vivia-se de produzir, com o Estado subvencionando dívidas intermináveis e
arcando com a inflação. Exibidores brasileiros, historicamente hostilizados
pela Produção, concentravam-se na sua área e no seu lucro, acomodados na
dependência dos distribuidores estrangeiros; nunca levaram a sério um fato
comercial comprovado: que o Cinema Brasileiro (se for exibido) dá dinheiro.
A própria televisão brasileira
moderna já surgiu boicotando nosso cinema (justamente o inverso da situação nos
EUA), apesar de se apoiar estruturalmente na narrativa dramática brasileira das
novelas. A rede Globo só passou a produzir as chamadas "séries
brasileiras" quando a Embrafilme patrocinou a realização de, creio,
setenta "pilotos" de televisão – o que, no regime militar, poderia significar
que viria por aí uma lei de obrigatoriedade de exibição de filmes ou séries
brasileiras na TV. Atuando nas duas frentes, junto ao governo e ao mercado, a
empresa fez que os tais pilotos nunca chegassem a nenhuma tela, grande ou
pequena. É bastante recente a criação da Globo Filmes, e a mudança estrutural
de postura daquela rede – que será mais ou menos acompanhada pelas outras – que
viria culminar nos grandes sucessos alcançados nestes dois últimos anos. Os
maiores responsáveis por essa guinada da "Vênus platinada" foram, não
coincidentemente, ex(?) cineclubistas.
Ainda em 1999 eu assisti a
grandes nomes do business, em pomposa mesa-redonda num congresso de televisão
por assinatura, diante do fracasso de suas previsões quanto aos milhões de
espectadores que deveriam ter comprado seu produto (em vez dos 12 milhões que
esperavam, a TV a cabo estacionou perto dos 2 milhões), descobrirem que talvez
fosse bom ter algum produto brasileiro na programação para ampliar a faixa de
consumo para além da classe A. Qualquer cineclubista, programador e observador
de diferentes platéias, sempre soube disso. Muitos milhões de dólares antes de
rediscutir o modelo importado.
Existe ainda um número muito
significativo de líderes sociais e políticos contemporâneos que, nos momentos
mais duros da ditadura militar, também iniciaram sua atividade por aquelas
associações culturais mais escorregadias para a Repressão: os cineclubes. Na
fase final do processo de redemocratização do País, quando ressurgiram as
entidades representativas de vários setores, muitas de suas primeiras direções
eram compostas até majoritariamente por ex-militantes do movimento cineclubista
que hoje são parlamentares, dirigentes, assessores importantes e altos
funcionários do Executivo em todos os níveis.
Nos guias de programação dos
jornais, que criaram a rubrica "cineclube" quando estes eram
numerosos, a palavra continua a ser usada para listar os programas das salas
mais variadas, nenhuma delas um verdadeiro cineclube. Mas a herança dos
cineclubes está muito presente em todas as salas, principalmente nas mais
modernas.
O cinema, a sala de exibição, é
bem diferente atualmente do que era há poucos anos. Os equipamentos melhoraram
muito, existe uma preocupação, que antes não havia em absoluto, com a qualidade
da projeção, o conforto e a segurança do espectador. A antiga bomboniére foi
substituída por uma área de estar, com cafezinho, refrigerantes e outros
atrativos. Antes que os apressados identifiquem esse "progresso" com
a entrada das companhias americanas no mercado brasileiro, é bom lembrar que
essa mudança começou antes. Deveu-se a muitos fatores, como campanhas da
imprensa que promoveu avaliações dos cinemas; fiscalizações mais eficientes dos
órgãos públicos, e inovações tecnológicas nos sistemas de som. Mas nada disso teria
sido introduzido sem ser forçado por alguma forma de concorrência (de fato, com
a entrada dos exibidores americanos e o conceito de cinema multiplex, vivemos
uma modesta "corrida" para ver quem faz mais e melhores cinemas),
muito anterior a essas novidades.
Foram os primeiros
"grandes" cineclubes abertos ao público em geral, nas grandes cidades
e com projeção em 35mm, nos anos 80, que motivaram essas mudanças. O Cineclube
Bixiga, em São Paulo, é a "mãe" de todos esses cinemas, com uma linha
de descendência direta que inclui os cineclubes Estação Botafogo, no Rio, e uma
segunda geração com o Elétrico, em São Paulo, além de vários outros, em
Curitiba, Belo Horizonte, Brasília, Campinas, Porto Alegre, Vitória, etc, sendo
que alguns já tinham uma outra estrutura: já eram cinemas comerciais,
"alternativos" ou "paralelos". Mas foi o Bixiga que fez uma
cabine de projeção de vidro, que permitia aos freqüentadores observar a
qualidade da projeção, uma preocupação assumida pela entidade e exposta ao
público. Foi o Bixiga que introduziu o barzinho cultural, com café, lanches,
livros e objetos variados de cinema. Foi o Bixiga que criou um sistema de
reservas de lugar. E o Bixiga tinha, proporcionalmente ao seu tamanho reduzido,
mais público que qualquer cinema tradicional: ele chegou a superlotar todas as
158 sessões de um mês; isto é, ter uma média de público por sessão maior do que
o número de lugares da sala (um risco de segurança: naquele ambiente agradável
as pessoas exigiam sentar no chão!). Seus filhotes imediatos mantiveram a
preocupação com a qualidade o sucesso de público e o ritmo de inovações: o
Estação e o Elétrico criaram sistemas com várias salas, ampliaram os serviços
disponíveis para o público e conservaram o sucesso: o Elétrico chegou a ser a
quarta renda em termos absolutos dentre os mais de cem cinemas de São Paulo
(1991-1992), e o Estação Botafogo acabou virando um grande circuito de salas,
que continua a se expandir pelo País.
Os viajados dirão que isso tudo
não é verdade; que os cinemas da Europa e dos EUA também adotaram essas coisas
todas. O que, evidentemente, não seria um exemplo do Mundo se dobrando ao
Cineclube Bixiga. Com certeza. A mesma coisa aconteceu por lá, e não foram
necessariamente cineclubes os precursores. Foram principalmente os cinemas Art
et Essai na França; cineclubes como o Electric e o Scala, em Londres; centros
culturais e cinemas paralelos como o Angelika Film Center, em Nova York. Além
da concorrência, claro, que ao contrário daqui, existe nessas cidades e países
há muito tempo e acelera o aproveitamento das novas idéias que não foram
geradas dentro da estrutura tradicional do comércio de cinema. Foram
apropriadas por essa estrutura. Felizmente, para o público.
Mas, ao se apropriar de um
conceito, a lógica de mercado lhe imprime novos conteúdo e direção. A música
popular no Brasil está vivendo intensamente este movimento: ganha espaço no
mercado e, na razão proporcionalmente inversa, se empobrece. A experimentação,
a criatividade são as primeiras qualidades a serem sacrificadas pela indústria
cultural. A imitação, a repetição de fórmulas de "sucesso" substitui
a inventividade. No cinema, também, isto é mais do que evidente. Ao invés da
criação gerar novos públicos, fazendo avançar o gosto, reformando a cultura
popular, adota-se o princípio de "pesquisar" o padrão mínimo do
público e "dar o que o povo quer", como repetem incansavelmente os
programadores de qualquer veículo de massa. E a evolução, temporariamente,
cessa, até que novas idéias surjam, de artistas e organizações externas à
indústria, para recomeçar o ciclo. Os novos "multiplex" consagram
essa fórmula: aumenta o número de salas de cinema, mas paradoxalmente diminuem
as alternativas em termos de filmes. Infelizmente, a apropriação de estilos,
métodos, idéias, nesse sistema triunfante de mercado geralmente é acompanhada
ou pela cooptação dos criadores, ou por sua eliminação (do mercado, claro).
Esse foi um dos motivos - entre outros - que levou ao fim de um ciclo do
cineclubismo brasileiro.
E o que ainda se preserva – e de
fato até se ampliou quantitativamente – de pluralismo, de abertura, de
qualidade e de diálogo com a inovação, no mercado de exibição brasileiro está
ligado aos circuitos "culturais" descendentes diretos dos cineclubes
35 dos anos 80 e 90 que, inclusive, incorporam inúmeros cineclubistas daquela
geração na gestão de várias ações educacionais, festivais e outras iniciativas.
Mas, na sua dinâmica comercial, esses circuitos não têm a maleabilidade
indispensável para ocupar todos os espaços que a sociedade brasileira requer,
nem a disponibilidade para promover todas as experiências de que o cinema
precisa. Essa versatilidade só o cineclube tem.
Felipe Macedo
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